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INTRODUÇÃO
Neste artigo,
apresentamos nosso atual projeto de pesquisa de doutoramento, que visa a ser o
aprofundamento e o desdobramento de nossa trajetória de pós-graduação iniciada
na Unisinos, em 2009, em nível de mestrado. À época, nossa dissertação abordou
as interações comunicacionais em práticas religiosas desenvolvidas no ambiente
católico online brasileiro. Naquele contexto, buscávamos compreender como se
davam as interações entre fiel-sagrado para a vivência, a prática e a
experienciação da fé nos rituais online do ambiente digital católico brasileiro
(SBARDELOTTO, 2012). Entretanto, tratava-se da análise de algumas manifestações
específicas da interface internet/religião, em um estudo que deixou pontos não
investigados e questões em aberto, além de ajudar a perceber outras
problemáticas pouco pesquisadas e trabalhadas no campo da Comunicação, que a
pesquisa atual, em nível de doutoramento, visa a examinar mais a fundo e
ampliar.
Com o
desdobramento de novos usos e práticas sociais a partir do desenvolvimento das
redes digitais e de plataformas
específicas para a sua manutenção, a internet vai emergindo como uma tecnologia
transformada em “meio de comunicação, de interação e de organização social”
(CASTELLS, 2005, p.257), em um período de sincronização de “quase todas as
mídias que já foram inventadas [oral, escrita, impressa, de massas, das mídias
e digital]” (SANTAELLA, 2003, p.78).
Entendida como um sistema social de significação
cultural, hoje, a religião se depara, nesse processo, com novos contextos
midiáticos de experiência e de prática, nos quais seus discursos, crenças e
símbolos são percebidos e expressados de formas inovadoras com relação aos
contextos institucionais tradicionais. Em um período histórico em que os
processos de comunicação midiática se tornam generalizados no tecido social,
especialmente a partir dos meios digitais, a internet passa a ser também um
ambiente para a prática religiosa, caracterizando um fenômeno de midiatização
da religião.
As plataformas de redes sociais digitais, como
Facebook, Twitter e Instagram, especificamente, oferecem a possibilidade de que
os usuários em geral – indivíduos, grupos e instituições – possam produzir
conteúdos religiosos de forma pública e em rede, sob a forma de textos, imagens
e vídeos, distribuindo-os de forma instantânea em nível global, potencialmente.
Nessas interações sociais tecnologicamente mediadas, as práticas religiosas
trazem consigo lógicas e dinâmicas midiáticas. Instituições e indivíduos
religiosos, assim, vão sendo impelidos pela nova complexidade social a
modificar suas estruturas comunicacionais e sistemas internos e externos de
significação do sagrado em sociedade.
Aqui, referimo-nos especificamente ao caso católico. O interesse pelo
catolicismo se deve à relevância sócio-histórico-cultural da Igreja Católica,
especialmente no Brasil. Embora em declínio (em 1872, 99,7% da população
brasileira era católica; no ano 2000, 73,6%), os católicos ainda são a maioria
religiosa do país, com 64,6% da população, dentro de um cenário de grande
mobilidade e sincretismo religiosos. No
caldo cultural da midiatização, o catolicismo embebe e é embebido pelos
processos comunicacionais midiáticos, também na internet. Se nos sites oficiais
da Igreja Católica ou em sua presença oficial em redes sociodigitais são
comunicadas as versões autorizadas da tradição e da doutrina católicas, em
sociedades cada vez mais em midiatização, o fluxo comunicacional de sentidos
não se deixa deter por estruturas quaisquer. Se o catolicismo, “com sua
estrutura de caráter performativo, já tem um potencial de incorporar a
diversidade” (TEIXEIRA & MENEZES, 2009, p. 9), ao se posicionar em uma arena
pública como a internet e suas redes, a Igreja se coloca em uma encruzilhada
ainda mais complexa de discursos outros, que não lhe pertencem e lhe escapam. Pois,
nas redes sociodigitais, há inúmeros sentidos religiosos que acionam um
processo de circulação, por meio de lógicas e regularidades
sociocomunicacionais, que vão além das limitações eclesiásticas.
Neste texto, apresentaremos a construção de nosso problema de pesquisa,
contextualizando-o no ambiente sócio-histórico-cultural dos processos
comunicacionais contemporâneos, justificando a relevância desta pesquisa e
apresentando seus objetivos.
Podemos dizer
que, ao longo dos últimos anos, com o avanço da midiatização – em suas
especificidades digitais –, a Igreja debateu-se com uma “reforma digital”
(DRESCHER, 2011). Em sociedades em midiatização, a internet passa a ser uma
ambiência social não apenas de vivência, prática e experiência da fé, mas
também de circulação e reconstrução dos sentidos e práticas religiosos. Nesse contexto,
“as mídias sociais digitais estão mudando as práticas de comunicação, de
comunidade e de liderança” no interior da Igreja e, ao mesmo tempo, “estão nos
reconectando a práticas relacionais antigas e medievais que foram esquecidas ou
abandonadas ao longo dos séculos desde as Reformas Europeias” (DRESCHER, 2011,
p.XV, trad. nossa).
Diante desse
cenário de “reforma digital”, a alta hierarquia da Igreja respondeu com uma
espécie de “contrarreforma digital”, apropriando-se das mídias digitais de
forma institucional, em diversas plataformas. Nesse contexto, Bento XVI
identificou, no seu discurso de despedida do clero romano, em fevereiro de
2013, a interface extremamente complexa e densa entre a Igreja e o processo de
midiatização. Ao falar sobre o Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965) – a
maior cúpula da Igreja Católica, celebrado conjuntamente com as demais Igrejas
cristãs, que de certa forma revolucionou a vida da Igreja no século XX –, o
pontífice reconheceu que “havia o Concílio dos Padres – o verdadeiro Concílio – mas havia também o Concílio dos meios de
comunicação, que era quase um Concílio
aparte” (BENTO XVI, 2013, s/p, grifo nosso). E percebia que “o mundo captou
o Concílio através deles, através dos mass-media”,
pois foi o que “chegou de forma imediata
e eficiente ao povo” (idem, grifo nosso).
Diferenciando
entre o “Concílio dos Padres” que se realizava “no âmbito da fé” e o “Concílio
dos jornalistas” que “não se realizou no âmbito da fé”, o então papa
identificava “hermenêuticas diferentes” (BENTO XVI, 2013, s/p, grifo nosso).
Embora com uma crítica contumaz à cobertura jornalística do evento, o destaque
da fala do pontífice é o reconhecimento de que “este Concílio dos meios de
comunicação era acessível a todos.
Por isso, acabou por ser o predominante,
o mais eficiente” (grifos nossos). E nisso o papa via um processo de
“descentralização da Igreja”.
Falando
décadas depois do Concílio, Bento XVI percebe o papel do fenômeno da
midiatização nos próprios processos internos e externos de significação da
Igreja, não apenas em termos de expansão do alcance do Concílio (“acessível a
todos”, “predominante”), mas também em termos de reconstrução social do evento
(“o mais eficiente”), apontando para o risco central do ponto de vista
institucional: justamente a “descentralização da Igreja”, devido a uma
“hermenêutica política” dos jornalistas, que defendiam um maior peso ao “poder
do povo, dos leigos” (BENTO XVI, 2013, s/p).
Tal “risco”,
com o passar dos anos e a maior complexificação da midiatização com o
aprofundamento da digitalização, apenas aumentou. Com as mudanças do papel do
jornalismo e a passagem dos “meios de massa para a massa de meios” (ALVES,
2013, s/p) daí decorrentes, as hermenêuticas “da Igreja” e “dos jornalistas” foram
pulverizadas em inúmeras hermenêuticas eclesiais e inúmeras hermenêuticas
jornalísticas, complementadas e tensionadas por inúmeras outras hermenêuticas
“sociais” diversas, que agora passam a encontrar seu espaço midiático em um
debate público mediado pelas tecnologias digitais.
Por isso, a
“contrarreforma digital” buscou oferecer uma presença oficial da Igreja na
internet, mediante páginas em que estão contidas as versões autorizadas da
tradição e da doutrina católicas. A constituição de tal presença não foi
neutra, nem automática. Para a sua ocorrência, a Igreja precisou atualizar seus
processos comunicacionais para dar conta de uma nova complexidade
sociossimbólica que emergia a partir dos desdobramentos das tecnologias
digitais. Mas, por outro lado, em sociedades cada vez mais em midiatização, o
fluxo comunicacional dos sentidos não se deixa deter ou delimitar por
estruturas quaisquer. Embora a Igreja-instituição busque fazer um “uso bom e
sagrado” da internet, o fluxo de sentidos sobre o que é “ser católico” – seus
saberes e fazeres – encontra brechas e escapes no processo de circulação
social, indo muito além (ou aquém) dos interesses eclesiais – mesmo nas páginas
oficiais da Igreja, mediante ações comunicacionais diversas, a sociedade desvia
e desloca os sentidos propostos.
Com a
midiatização digital, portanto, aquilo que já vinha acontecendo historicamente
(a reconstrução do catolicismo, como o evento do Concílio, mediante a
construção de sentidos sociais por parte do jornalismo tradicional) se complexifica
hoje mediante dois processos: uma ruptura
de escala espaço-temporal da produção de sentido e por uma descontextualização de sentidos em todo
o tecido social (VERÓN, 2002). Igreja e sociedade em geral encontram-se
marcadas por novas possibilidades tecnossimbólicas de construção de sentido, em
termos de acesso, criação, armazenamento, gestão, distribuição e consumo de
informações – indo muito além da ação tradicional da “grande mídia”, entendida
como as corporações da indústria cultural, e muito além das ações eclesiais
tradicionais.
Ao mesmo
tempo, a “grande mídia” vai perdendo o monopólio do agenciamento dos sentidos
sociais em geral, e a Igreja passa pelo mesmo processo em relação aos sentidos
sociais sobre o catolicismo. Isso graças à emergência de novos agentes
midiáticos – indivíduos, grupos e demais instituições – que passam a promover
modalidades complexificadas de significação do socius em rede, de forma pública, heterogênea e “conectiva” (não
apenas coletiva) também sobre o fenômeno religioso. Ocorre, assim, o surgimento
de uma lógica sociodigital em rede, marcada pela construção conectiva de
sentido, com o advento de um novo tipo de “gestão” do social que passa, agora,
pela mediação de novos agentes midiáticos, que não substituem, mas se articulam
aos agentes tradicionais. Isso transforma a relação entre o social, o religioso
e o midiático.
Um sinal disso
foi o recente questionário vaticano, disponibilizado para toda a Igreja
Católica em nível mundial em novembro de 2013, como preparação para a III
Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos, ou seja, uma grande
cúpula mundial com a presença de todos os bispos católicos, para a reflexão e o
debate, neste ano, sobre “Os desafios pastorais sobre a família no contexto da
evangelização”. No documento de preparação, divulgado em nível mundial, o
Vaticano indica uma série de perguntas que “permitem às Igrejas particulares
participar ativamente na preparação
do Sínodo Extraordinário” (SÍNODO, 2013, s/p, grifo nosso).
Tal
questionário foi enviado para 114 Conferências Episcopais dos cinco
continentes, e suas respostas deveriam ser devolvidas, posteriormente, à Santa
Sé. Diversas conferências locais optaram por colher as respostas via internet,
mediante sites específicos, listas de e-mail ou mesmo em redes sociais
digitais. Por outro lado, diversas dioceses ou conferências episcopais passaram
também a divulgar as respostas ou comentários sobre elas publicamente, via
internet, antes mesmo de qualquer retorno ou síntese oficial aos escritórios centrais
em Roma. Assim, os sites e as redes sociais digitais passaram a compor uma nova
discursividade pública sobre a Igreja e seus embates com a sociedade
contemporânea, envolvendo diversos ambientes (sites, fóruns, redes
sociodigitais etc.) e diversos interagentes (dioceses, jornalistas, fiéis
individuais, grupos etc.). Trata-se, portanto, de um fenômeno novo inclusive na
gestão interna dos processos eclesiais e comunicacionais ad intra e ad extra.
Não há quem
não veja a imprecisão e a miopia, a
esse respeito [de uma reflexão sobre os contornos autênticos do sensus fidei, do sensus fidelium, do sensus
Ecclesiae], do emprego de técnicas de e-mailing
para sondar indiscriminadamente na
rede, via internet, a opinião dos demais... Bem outros são os fóruns e as
ágoras de que a Igreja precisa hoje para reencontrar e expressar, de modo
genuíno, aquele sensus fidei pelo
qual ela é, em todos os tempos, revigorada e rejuvenescida. [...] O fato de ter
substituído a opinião da rede pelos lugares próprios do sensus fidelium revela não só um misunderstanding em torno do que constitui a Igreja, mas também
leva a pensar até que, na formação eclesial, consideram-se, no fundo, como mais
eficazes algumas técnicas de pressão
política, em vez que os critérios concedidos pela própria fé (MÜLLER, 2014,
p. 7-8).
A linha de análise, como se vê, segue a de Bento
XVI, em que, segundo a leitura eclesial, as modalidades comunicacionais
emergentes com a midiatização digital trazem uma politização desnecessária e
alheia à vida eclesial, envolvendo uma ação pública “imprecisa e míope” de
“pressão política”, até mesmo para além do campo jornalístico (conforme a
análise de Bento XVI), envolvendo a “opinião da rede”. Isso, na opinião da
cúpula eclesial, comportaria riscos de descentralização e deturpação do autêntico
sensus fidei. Assim, ao se apropriar
da internet, a Igreja adentra uma arena pública formada por redes e práticas
próprias, em uma encruzilhada extremamente complexa de discursividades outras,
que não podem ser controladas a priori pela instituição. Para lidar com tal
fenômeno, a própria Igreja-instituição busca atualizar seus processos
comunicacionais para lidar com novas modalidades de interação e organização de
sua constituição sociossimbólica.
Contudo, em seus sites oficiais ou em suas páginas
oficiais nas plataformas de redes sociais digitais como Facebook, Twitter e
Instagram, os sentidos religiosos distribuídos pela Igreja acionam um processo
de circulação social, por meio de lógicas e regularidades sociocomunicacionais,
que vão além das limitações eclesiásticas: os usuários em geral – indivíduos,
grupos e demais instituições – reconstroem tais conteúdos religiosos de forma
pública e em rede, dando-lhes novos sentidos. Ou ainda constroem sentidos
religiosos próprios e específicos sobre o catolicismo – sobre ou para além dos
discursos oficiais da instituição – sob a forma de textos, imagens e vídeos,
distribuindo-os de forma instantânea em nível global. Na internet, portanto,
emerge uma religiosidade em
experimentação, marcada pela pouca fidelidade institucional e doutrinal,
pela fluidez dos símbolos em trânsito religioso e pela subjetivação das
crenças. O fiel não é apenas coconstrutor de sua fé, mas também realiza um
“trabalho criativo” sobre a própria
religião, tensionando a “interface eclesial”.
Esse também
seria um “sinal dos tempos” da contemporaneidade, em que assistimos, de um
lado, novas modalidades de expressão do catolicismo por parte de sua
institucionalidade eclesial e, de outro, novas modalidades de percepção por
parte da sociedade, entrelaçadas também com novas modalidades de significação
pública por parte dos “receptores”, o que indica uma perda de influência e de
poder da instituição religiosa sobre os comportamentos religiosos comunitários
e individuais. Isso não significa o desaparecimento da instituição, mas sim a
autonomização dos comportamentos, em que, “cada vez mais, as pessoas compõem
elas mesmas sua própria religião” (LIPOVETSKY, 2009, p.61). Os desdobramentos
de tais processos demandam um acompanhamento sistemático e uma observação
atenta, na busca de compreendê-los à luz dos processos comunicacionais que
constituem a midiatização da religião.
As práticas
sociais no ambiente online, a partir de lógicas midiáticas, complexifica hoje
também o fenômeno religioso. Formam-se novas modalidades de percepção e de
expressão do sagrado em novos ambientes sociais e também de culto. Cada vez
mais, o fenômeno religioso se desloca para ambientes “públicos” – como as redes
sociodigitais. O “sagrado” passa a circular e fluir nos meandros da internet
por meio de uma ação não apenas do âmbito da “produção” eclesial nem só
midiática, mas também mediante uma ação comunicacional dos inúmeros usuários
conectados.
Nessa
interface específica do processo de midiatização digital com o fenômeno
religioso, vemos cada vez mais a apropriação das redes digitais como ambientes
de circulação, ou seja, de reconstrução de crenças, discursos e práticas
católicos, remodelados para as novas linguagens e dispositivos digitais online.
A Igreja-instituição, mediante a “publicização” e “socialização” digitais de
suas crenças, discursos e práticas, e a sociedade em geral, nos mais diversos
âmbitos da internet, fala sobre o catolicismo, ressignificando,
ressemantizando, reconstruindo a experiência, a identidade, o imaginário, a
prática, a doutrina, a tradição religiosas, atualizando-os a novos agentes
sociais e a públicos ainda maiores, em uma trama complexa de sentidos. Esse
cruzamento de sentidos vai moldando uma reconstrução social e pública do
catolicismo. Construtos sociais sobre o catolicismo vão sendo ofertados não
apenas por um polo fixo de produção (a Igreja-instituição ou “os jornalistas”,
segundo Bento XVI), mas sim ofertados-recebidos simultaneamente pelos mais
diversos agentes sociais (indivíduos, grupos e demais instituições, religiosas
ou não), sendo construídos e desconstruídos nas interações sociais, para além
do controle simbólico e teológico da instituição.
Surge, assim, aquilo que chamamos de “católico”,
ou seja, um diversificado e difuso sistema
social de crenças, discursos e práticas religiosos vinculados ao catolicismo e
à Igreja Católica, que torna possível a comunicação sobre tal experiência
religiosa entre os agentes sociais. Isto é, o “católico” é, ao mesmo tempo, um
produto da interação e da comunicação entre os agentes sociais e, sem ele, não
seria possível tal processo de interação e comunicação (cf. DUVEEN, 2011). Como
um macrouniverso simbólico, o “católico” é “a matriz de todos os significados
socialmente objetivados e subjetivamente reais” (BERGER & LUCKMANN, 2012,
p.127) sobre o catolicismo, que são construídos e desconstruídos (portanto,
reconstruídos) nas práticas sociocomunicacionais em redes digitais.
Dessa forma,
as interações sociais em redes digitais produzem novas modalidades discursivas
sobre o catolicismo, da Igreja para com a sociedade, da sociedade para com a
Igreja, e da sociedade para com a própria sociedade – favoráveis, resistentes,
contrárias ou subversivas etc. – a partir
e também para além daquilo que é
ofertado pela instituição eclesial. Quer em páginas oficiais brasileiras da Igreja Católica nas redes sociodigitais;
quer em páginas que se reapropriam do “católico”, gerando ambientes oficiosos de discurso religioso
católico; quer em páginas que buscam alternativas
ao discurso institucional e tradicional sobre o catolicismo; o que chama a
atenção é que, em ambientes sociais digitais públicos sem qualquer vinculação
com a fé católica – como o Facebook, o Twitter ou o Instagram –, os usuários
encontram formas de dizer o sagrado católico.
Nesse processo
de circulação, vemos que a sociedade diz “isto é católico”, “isto não é”: não
apenas a instituição religiosa, nem somente as corporações midiáticas, mas
também usuários comuns (indivíduos, grupos ou demais instituições) tomam a palavra publicamente e dizem o “católico” midiaticamente para a sociedade em geral. Nesses
ambientes, se dá a tensão entre
a identidade oficial da Igreja e a sua identidade social. Em suma,
os usuários falam sobre e fazem algo com o “católico”, para além da oferta religiosa disponível na
internet por parte da Igreja ou da grande mídia, em termos de reconstrução dos
sentidos católicos, na circulação comunicacional do ambiente digital – em um
processo simultâneo de “procepção” (produção-recepção) ou “prossumo”
(produção-consumo) (HOOVER & ECHCHAIBI, 2012).
Nessa nova
ambiência sociocultural midiatizada, as crenças, discursos e práticas católicas
públicas se manifestam cada vez mais como cristalizações das aspirações e das
necessidades dos diversos sujeitos sociais em sua construção de sentido,
afastando-se aos poucos de um “centro” norteador marcado pela instituição e
pela autoridade. Nesse sentido, a temida “descentralização” por parte de Bento
XVI nos parece uma intuição relevante e empiricamente observável. Em suma, as
mediações históricas do “religioso” passam a ser cada vez mais midiatizadas, em
rede. Entrevê-se uma coevolução entre
as mídias (agora ampliadas complexamente ao socius
em geral) e as religiões, que gera novos desdobramentos nos elementos
constituintes de cada uma delas.
Assim, em redes sociais digitais, como veremos, complexifica-se
justamente a tensão entre três conceitos-chave no âmbito religioso: identidade, autoridade e comunidade. A identidade católica passa por um
processo de “descentralização” a partir da emergência da autonomia de novos
agentes midiáticos. Os vínculos que
unem a Igreja e a sociedade, ou mesmo a Igreja consigo mesma, seus fiéis e seus
ministros, passam por novas modalidades de comunidade. E a autoridade
institucional da Igreja se desdobra na interação tensionadora com novas
modalidades de alteridade nas interações sociais em rede. Surgem novas
expressões de autonomia dos
fiéis-internautas perante a instituição religiosa e a comunidade eclesial. Tudo
isso ocorre mediante uma nova tecnicidade
(as redes sociodigitais), impulsionada pela circulação. Esse cruzamento,
desvio e deslocamento de sentidos se condensam como circulação, que aciona a
reconstrução do “católico”, fomentando o surgimento de um “novo” catolicismo –
marcadamente midiatizado –, em tensões muito ricas para a pesquisa.
Se podemos entender o “católico” como “uma ‘rede’
de ideias, metáforas e imagens, mais ou menos interligadas livremente”
(MOSCOVICI, 2011, p.210) sobre o catolicismo, podemos dizer que há uma tríplice
rede em jogo e que merece a nossa análise: uma rede (internet) de redes
(dispositivos interacionais online como Facebook, Twitter e Instagram) em que
circula uma rede de construtos sobre o catolicismo (o “católico”). Todos esses
processos alimentam e dão corpo à circulação comunicacional na internet. E
assim, além de bit, o Verbo também se faz
rede.
A partir da
contextualização e delimitação propostas, nosso problema se articula da
seguinte maneira: como se organizam os
processos de reconstrução do “católico” no fluxo comunicacional da circulação
em redes sociais digitais?
Ou seja,
desdobrando o problema, perguntamo-nos: que processualidades comunicacionais do
de plataformas de redes sociais digitais como Facebook, Twitter e Instagram
(lógicas, interfaces, protocolos etc.) estão implicadas na ressignificação do
“católico” em rede? Que transformações do “católico” passam a ocorrer por meio
de novos usos sociocomunicacionais que incidem na reconstrução de identidades,
autoridades e comunidades dinamizadas pelas processualidades das redes sociais
online? Como se organiza o complexo sistema de interações entre os interagentes
das redes sociais online? Que desdobramentos a midiatização digital gera nas
experiências, nas crenças e nas práticas católicas na contemporaneidade?
Diante de tais
questões de pesquisa, propomos nossa reflexão a partir de algumas proposições,
a serem desdobradas e tensionadas ao longo de nossa investigação:
·
Por
ser um campo de fronteira entre âmbitos socioculturais distintos, há no
fenômeno de midiatização digital da religião um complexo de possibilidades e
contingências sociais, simbólicas e técnicas diversas, tanto às redes de
agentes quanto aos fluxos de informações.
·
As
interações sociais em rede produzem novas discursividades da Igreja com a
sociedade, da sociedade com a Igreja, e da sociedade com a própria sociedade
sobre o catolicismo, a partir ou para além daquilo que é ofertado pela
instituição eclesial.
·
Tais
discursividades apontam para o fenômeno da circulação que, mais do que um
“fluxo” entre polos fixos com produtos estáticos, pode ser entendida como a
lógica e a dinâmica de reconstrução
inerentes a agentes em interação, sejam eles sentidos, discursos,
símbolos, contextos, instituições, coletivos, indivíduos, tecnologias etc., que
inter-retroagem em suas ações comunicacionais.
·
Centralmente,
a circulação é dinamizada por uma rede de inter-relações entre processos
sociais, simbólicos e tecnológicos. Processos tecnossimbólicos se manifestam
nas interfaces ofertadas pelas
plataformas e reapropriadas pelos usuários, sejam eles indivíduos ou
instituições, para organizar seus processos simbólicos. Processos sociotécnicos
emergem como protocolos que são
estabelecidos socialmente para organizar as interações sociais mediante
tecnologias específicas. Processos sociossimbólicos se evidenciam nas
modalidades de computação social,
aqui compreendida como complexo organizador das ações sociais de experimentação
simbólica.
·
Tais
processos moldam e condicionam as práticas religiosas e a reconstrução do
“católico” em redes digitais. Não estão dados de antemão, mas são qualidades
emergentes que envolvem lógicas e dinâmicas sociotécnicas, e contextos de usos
e práticas sociais midiatizados. Por sua inter-relação, propomos compreender
tais processos como dispositivo conexial,
ou seja, um complexo sócio-técnico-simbólico heterogêneo de interfaces,
protocolos e gestos de computação social que possibilitam a conexão digital e
organizam a comunicação entre os agentes em rede, sejam eles indivíduos, grupos
ou instituições.
·
Dessa
forma, as processualidades comunicacionais envolvidas nas práticas sociais da
internet ajudam a moldar o “catolicismo das redes”. Essa reconstrução do
“católico” se expressa em disputas de poder simbólico por meio de práticas
conectivas, em termos de identidade, comunidade e autoridade operando aquilo
que chamamos de reconexões sócio-técnico-simbólicas, ou seja, conexões
“novas”, ultraconexões, nas quais que se manifesta a invenção social sobre o “católico” nos processos de circulação
comunicacional.
·
Desse
processo, emerge uma “religião pública”, marcada por um poder simbólico
compartilhado socialmente, mediante experimentação religiosa, que desloca o
papel central das instituições eclesiais no estabelecimento de crenças e na
configuração de práticas religiosas.
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Chamamos de “plataforma” aqueles ambientes digitais que não
oferecem “conteúdo” propriamente dito, mas sim padrões e estruturas
operacionais para a produção e publicação de conteúdos por parte de seus
usuários, como por exemplo o Facebook, o Twitter e o Instagram, aqui
analisados.